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ESPAÇO ARTELETRA: A POESIA DA PSICÓLOGA MINEIRA PAULA VAZ

A ONÇA

Esses animais melânicos
já sofreram mutações

Por isso surgem na luz
como vestígios da noite

E esse poder muscular
de rasgar o vento
divide ao meio uma floresta

A TARTARUGA

As tartarugas como as cartas
sempre chegam ao seu destino

A ANTA

A anta é um mamífero
mas poderia ser uma pilastra irremovível

A GALINHA

O voo da galinha é um fogo de palha

O LABRADOR

O dilema é claro
se ele se comprime
perde a própria
natureza
se ele se exprime
estraga um pouco 
seu jardim

porque o real
derrama

E se mergulha para valer nas águas
é porque sabe nadar. 

E não venham lhe pedir remanso
ou explicar-lhe com palavras de Paul Ricoeur
que nunca sairemos saciados da vida
já que sempre deixaremos
um banquete para trás

O labrador não tem pachorra

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DESERTO

E o deserto é uma página em branco
Esse espaço desabitado
A mudez das coisas que perdem
os seus nomes
Essas terras da sede
Esse território negligente
coberto de escombros
Altar rodeado de velas

Sagrada inquietude
de tudo que ainda não é
silêncio

Todo livro é um deserto
porque a princípio
não temos palavras para intensidades
e só interessa escrever
sobre aquilo que não temos
palavras para dizer

Então é preciso pescá-las
pelo mundo
engendrá-las
até sentirmos que conseguimos passar
o elefante da solidão
pelo buraco de uma agulha

Escrever é encontrar o fio
do buraco da nossa agulha
onde quer que ele esteja
no horizonte
nas bordas do mar 
perto de você

É esse escrito que ofereço
às palavras que nos transbordam
às palavras que nos transportam
aos livros que precipitam livros
aos Contos de amor e Não

Porque O amor não vazará meus olhos
Nunca mais

Escrever é retornar à sala vazia
à copa de uma árvore
e escutar o que vive

É não estar de acordo com as coisas
como são
É querer modificá-las um pouco
e não saber o que virá

Essa moral de ser
em direção ao fulgor
Como diria Duras
escrever em direção aos desertos
porque somos todos instruídos em dor

Sem sombra
Partidos

Para cada deserto é preciso um artifício
que expresse a língua
da sua natureza muda.

O deserto era a página em branco.                                      

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TEU POEMA

Cada poeta que descubro
me apaga inteira

Interrompo a leitura

Teu poema me assola e me afunda

Quero palmilhar o ritmo 
da sua respiração

Sinto que não escrevi nada ainda

Cirúrgica
num mesmo ato
sua letra me ara e me desterra

Torço para que se demore em minhas mãos
e tento me prevenir do que virá

Mas o que vem me espera
em xeque- mate

Agasalho-me frente ao teu poema
mas ele me despe

Nossas palavras se encontram na sua linha 
e no meu silêncio

Nossas palavras se veem 
antes que nos vejamos 

Elas não sabem o que fazer 
com o que viram

Elas se reviram
por dentro

Minhas palavras querem fazer algo 
com as suas

Elas não sabem o quê

Fecho teu livro

O que for acordará.    

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CORAÇÃO

Meu coração é um mundo à parte
Uma gaiola entreaberta
Um museu de brinquedos
Uma chuva fina
contínua
Um lodo
Um filme De Fellini
Um filme de Godard
Pássaro que gralha
Criança com as mãos no ouvido

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A OUTRA LÍNGUA: AMOR

O amor é uma vibração da língua
quando tiramos o sentido das coisas
Gesto que chega como uma palavra nova
O amor é um abismo e a linguagem
o muro que não consegue explicá-lo

Alguém diria : é  quase música

O  que  nos resta então
senão tomarmos o partido da voz
ouvirmos o ruído do silêncio das conchas
deixar que o nome próprio penetre
na mundaneidade das coisas
co-nascer com elas
a cada olhar que as percebe
por uma escritura um gesto
um tom um som

Ser um instrumento de corda
para que o mundo soe e  ressoe

Porque o som
esse que sai do fundo da garganta dos homens
esse som mudo e, no entanto, imperativo,
custa a achar um espaço propício
por onde possa falar.
E, quando fala, já não fala mais,
canta.
Porque toda caixa de ressonância
é motivo de música.

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A ESPONJA

Essa mania de se deixar inundar pelas águas,
consentir com a expansão,
e depois esse desejo de reclusão ao pouco,
essa vontade de voltar para casa,
retornar ao centro. O seco.

E pensar que nada disso é sempre suave,
esse ir e vir.
Ir e abandonar as formas,
vir e abandonar as águas.

Todo esse processo vivo de sístole e diástole:
corpo vivo que não se cala, a não ser no risco.

Corpo tornado linha,
tornado margem.

Apesar do tufão, agora é como se sorrisse por dentro,
com entusiasmo, mas sem alarde.

Até que batam à porta,
até que lhe voltem a retumbar, no imo,
os empuxos do mundo.

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CRISTAL NATURAL

Penso  em você como quem mói a carne naquele aparelho antigo e enferrujado atarraxado a mesa.

O triturador cumpre o seu destino.

Há séculos soturnos que separam nossas línguas.

Entre nós, tanto muro, tanto tijolo

e essa lã misturada a vidro  que recheia  a parede  das casas pré-fabricadas.

A hora pára. Não o conheço mais.

Tateio apenas as plantas, a relva, os artistas, os loucos e todos aqueles seres  vagalumes, que ainda têm claridades.

E rogo ao horizonte das aves que sobrevoam o mar a concessão de plainar sobre a superfície das águas

até que se revele a mim o que fazer com esse  açúcar União deixado aqui.

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ÉRAMOS

Alguém disse:
Eu te espero e esperarei sempre.
Ela joga as palavras atrás do sofá,
mas elas voltam para a beirada da cama.

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BELO HORIZONTE    

                                                           PÓS DRUMMOND

Não nasci em Itabira
Sou de Belo Horizonte                                                               
Por isso sou alegre e triste
contida e desmedida
Quarenta por cento de ferro nas artérias
Sessenta por cento  praça da liberdade
E esse estranhamento do que na vida é sede de ilusão
A vontade de amar que me anima e  arruína
vem de Belô
dessas montanhas que tramam e entranham
sua borda infinita evocando o mar
De BH trago este poema que te ofereço
Esse broche de lagartixa que era da minha avó
histórias do Fernando Sabino
e dos cavaleiros do apocalipse
o chaveiro da Itacolomi
a memória da Angela Lago
e um raminho desses ipês
que tomam conta dessa cidade-jardim
Tive ouro tive cobiças tive enganos
Hoje sou poeta
Sim meu amor
É belo o horizonte
Apesar dos pesares
do medo da morte
do medo da vida 
É belo o horizonte                                           

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A flor

A flor é a causa, o cálice que aspira a coisa,

pelo perfume que emana, as pétalas que soltam e a
insistência de viver suspensa ao chão.

Uma flor precisa de espaço para crescer,
e de determinada temperatura.

Algumas preferem o sol, outras se dão melhor
na sombra,

mais ainda existe aquela que necessita de meio dia
de sol e meio dia de sombra, como as lavandas.

Uma flor precisa de água.

Sem isso, seco o caule, não realiza sua beleza.

Ela deixa que o líquido escorra sobre seu corpo, filtrando
dela o frescor, mas em contrapartida, dele absorve o traço,
que lhe garante o desenho e a cor.

Autobiografia da autora

Nasci em Belo Horizonte, em 1973. Quando nova, eu queria ser jornalista ou estilista. Depois, resolvi que queria ser psicanalista. Formei-me em psicologia em 1996, mas, desde o começo do curso, já frequentava os eventos e as atividades nas instituições de psicanálise  Fiz parte da Escola Freudiana de Psicanálise por 6 anos. Fiz análise por 16 anos com analistas lacanianos. Trabalhei no ambulatório do Hemominas a convite da professora Lúcia Nunes por 3 anos e depois no CTI do Hospital Mater Dei por 6 anos a convite da Dra. Marisa Decat. Trabalho também no consultório desde então.

As letras sempre estiveram presentes, nos livros de poesia que ganhava do meu pai Javert, psiquiatra e estudioso de filosofia; nos muitos livros de psicanálise que minha mãe Gilda escrevia; nas oficinas da Dagmar Braga, nas aulas da escritora Lucia Castello Branco que eu frequentava como ouvinte na  Pós- graduação em literatura da UFMG sobre Maria Gabriela Llansol, Clarice Lispector, Marguerite Duras, Roland Barthes; nos encontros semanais na casa da Imaculada, coordenados pelo poeta Sérgio Alcides, onde líamos, a cada semestre ou ano, um poeta diferente, passando por Cecília Meireles, Ted Hughes, Drummond, Manuel Bandeira, Kaváfis, Armando Freitas Filho, Ana cristina César, Paul Valery, Wislawa Szymboska, Maiakóvsky e onde meus olhos se abriam cada vez mais encantados para esse universo; nas leituras de  Shakeaspere na casa da escritora Angela Lago, que também duraram 10 anos e que se transformaram em encontros em que discutíamos assuntos gerais da literatura e celebrávamos a vida e a amizade. Encontros que duraram até a partida da Angela, que me chamava de filha.

Em 2014, lancei meu primeiro livro Não se sai de árvore por meios de árvore, fruto do meu deslumbramento com a obra do poeta Francis Ponge e do impacto que ele teve sobre mim. Um encontro com todo um pensamento que eu abrigava informulado e que, ali, reconheci. Em 2016, lancei meu segundo livro A outra língua: amor e, em 2018, lancei Deserto, um livro necessário, escrito em uma madrugada, após releitura de três livros da escritora Lúcia Castello Branco. Livro que, quando acabei de escrever, já havia me transformado em outra pessoa. O ar era outro.

Todos os livros foram editados pela Cas’a Edições de Belo Horizonte, Minas Gerais.

Espaço ArteLetra

O Espaço ArteLetra é um ambiente de divulgação e circulação de produções artísticas e literárias, em particular de produções contemporâneas nacionais. Este Espaço de exposições tem como um dos principais objetivos apresentar projetos diversificados, incentivando a participação de novos artistas e contemplando diferentes suportes e linguagens, que tanto dizem da cena atual.

Uma das intenções do Espaço ArteLetra é aproximar o público de um amplo conjunto de obras, estimulando o acesso e consumo de arte. Ao trazer essas produções para o espaço privilegiado do Notícias Gerais, queremos suscitar novos diálogos e questões latentes da nossa sociedade, contribuindo para a formação de público e troca de experiências.

O palíndromo ArteLetra, formado pelo espelhamento quase perfeito das palavras “arte” e “letra”, apenas ressalta a característica híbrida das produções contemporâneas, e a estreita relação entre as artes, palavras e mídias. Esse laço é aqui uma representação das nossas relações, da maneira como nos correspondemos, e do reconhecimento de que as manifestações culturais nos tornam mais próximos, ainda que cada qual com seu olhar.

O Espaço ArteLetra mantém um calendário regular, sendo a cada semana um/a novo/a artista convidado/a.

Fique antenado!!!

Deborah Castro, curadora.

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