O Amador reconduz seu gozo; não é de modo algum um herói; ele se instala graciosamente (por nada) no significante: na matéria imediatamente definitiva da música, pintura: sua prática geralmente não comporta nenhum rubato (esse roubo do objeto em proveito do atributo) ele é – ele será, talvez – o artista contra burguês.
Roland Barthes
Quem se apaixona por alguma coisa, em algum momento, acaba sendo trespassado pelo que o captura. É um imperativo ético seguir atrás das lentes quando os objetos, as pessoas, as arquiteturas giram, querendo nos dizer alguma coisa.
A princípio, livre do compromisso com a técnica, ser transportado para o cinema por puro apreço e no crescente, pelo amor.
O filme Amador, que expressa o fascínio de Filip (Jerzy Stuhr) pela câmara, cuja função inicialmente seria o registro dos primeiros tempos de vida da filha e posteriormente dos eventos da fábrica em que trabalha, conjuga algumas questões que poderíamos destacar: Por que o operário não pode sonhar com algo além de sua rotina? Por que devemos desprezar do cenário o bastidor das coisas? Quem disse que aquilo que tendemos a deixar de fora da cena não poderia ser, até mesmo, o mais importante?
Se a sensibilidade de Filip pode soar, a princípio, ingenuidade, praticar uma atividade ao sabor do gosto, consentir com a experimentação e se autorizar à liberdade de explorar o que não se convenciona, para além dos fins lucrativos e do caráter utilitário que rege as condutas na sociedade, talvez o aproxime mais do que Barthes nomeou “artista contraburguês”.
Porque a vida acontece no giro das perspectivas, e ao encará-lo, o autor acaba sofrendo uma espécie de vigilância constante, além de interferências por parte do sistema.
Os filmes de Kieslowski são conhecidos por tornarem notáveis as contradições humanas e toda uma série de questões existenciais, morais, éticas e sociais que afligem seus personagens. O diretor parece ter alcançado uma maneira absolutamente singular de filmar e fazer falar os objetos, como se primeiro viesse a câmara e depois a narrativa. Como se a câmara tivesse vida própria e se guiasse atrás das coisas em movimento. Como se ela corresse sempre atrás do seu motivo.
E Filip, por trás das lentes, vai sendo puxado para dentro do cinema. Filmar vira a atividade principal de sua vida, e esse novo fascínio vai se ocupando dele até se elevar acima de todas as outras coisas.
É o casamento que ressente o golpe da paixão. É o chefe da companhia que não desiste de tentar ter o controle sobre o conteúdo que há de ser mostrado ao mundo por seu funcionário, o que gera atrito entre eles.
A ordem de cima da fábrica exige que haja cortes. Querem eliminar das filmagens a transparência, a honestidade, a captura do olhar das coisas pelo diretor, revelando, também dessa forma, aspectos sociais e políticos da Polônia da época, que tentava controlar o que podia ou não podia ser mostrado.
O cineasta polonês, Krzysztof Kieslowski, também começa sua carreira de diretor fazendo documentários sobre a vida dos trabalhadores. Pessoas anônimas, que ficam geralmente fora da cena, excluídas, como rebotalho da sociedade, passam para a tela a ocupar um lugar central.
– Você vai ajudar alguns, outros você vai prejudicar. Siga sua intuição – diz o amigo, interpretado por Jerzy Nowak, com realismo.
Em uma passagem, Filip Mosz conversa no telefone com uma mulher. Do outro lado do vidro, sua esposa o vê. Ela parece perceber que ele fala com um amor proibido. A mulher ao telefone pergunta: O que te ocorre? Ele responde, claramente. Minha esposa me vê. A mulher aconselha: Corra atrás dela. Ele não se move. Ela pergunta: Já está indo? Ele responde: Não. Estou aqui.
Ele também continua a fazer o filme sobre a vida de um operário antigo da fábrica. Ele não consegue trair o próprio desejo. Ele mostra o bastidor das coisas e consente com o seu. Porque isso é muito maior do que o emprego na companhia ou o casamento. Isso diz de uma ética do viver, que, por sua vez, nada tem a ver com a moral.
Por que separar agora? Agora que estou entendendo por que razão estou vivo? Por que agora? pergunta ele à sua mulher. Porque eu quero outra coisa, ela responde. O quê? insiste Mosz. A mesma coisa que você queria no princípio. Um pouco de tranquilidade.
Isso não é verdade. Você não me ama mais, ele diz. Isso tornaria tudo mais fácil, ela conclui.
Se por um lado ele filmava a realidade que geralmente não se via, já que não costumava vir à público, era a realidade das coisas como elas eram. Deliberadamente.
Afinal, por que você fez esse filme? questionam os repórteres ao personagem de Krzysztof Zanussi, que interpreta a si mesmo como um diretor de cinema. Por que você fez esse filme chamado Camuflagem?
Eu fiz esse filme porque sinto que as pessoas honestas estão em desvantagem atualmente. Elas raramente têm sucesso. Muitas morrem na praia.
Então alguém lhe pergunta:
Mas é suficiente que um diretor acredite que ele está dizendo a verdade? Ele não deve também tentar provar isso? Sim, ele deve, mas esse é exatamente o nosso problema. Perguntamo-nos se o que estamos dizendo é verdadeiro ou sábio, sem podermos especificar como pode ser testado. Se por um lado, todos esperamos que nossos filmes ajudem alguém, que mudem a sociedade; por outro, encaremos a verdade. Não somos mais engenheiros da alma, capazes de mudar o mundo com a ajuda de uma varinha mágica. Os critérios são relativos. Não há regras rígidas e rápidas. Nós não sabemos. E essa dúvida é a nossa força.
Kieslowski parece aqui subverter o cogito cartesiano. De Penso, logo sou, para Penso, onde duvido. O próprio Descartes, m suas Meditações Metafísicas, ao questionar a existência de Deus, introduzindo a dúvida, desdobra a frase: Eu duvido, logo sou.
O psicanalista Jacques Lacan também encontra em Descartes o fundamento para formalizar o seu conceito de sujeito para psicanálise. De Penso, logo sou para Sou onde não penso.
O ser artista estaria além do pensamento, além desse lugar que um poeta diria que perseguimos tentando ser fiéis a nós mesmos, e onde nosso espírito se entedia mortalmente. Um artista cria tateando o escuro quando seus espelhos se quebram.
É esse não saber que nos faz repetir as mesmas coisas várias vezes de forma diferente, diz Kieslowski. Repetir, repetir até ficar diferente, diria Manoel de Barros.
Rodar em torno de um mesmo objeto várias vezes, por diversos caminhos, por diversos ângulos, até conseguir extrair dele sua qualidade diferencial, não o que o cataloga no meio das outras coisas, mas o que dele é só dele: sua diferença, seu clarão, aquilo que um dia pode saltar ao mundo como uma espécie de novidade, uma evidência portadora de um saber ou a grafia de seu próprio silêncio.
Nesse percurso, acompanhamos de perto a solidão do personagem principal na construção do um caminho que não resiste em mostrar o que tenderia a permanecer escondido: o pouso de um pombo sobre a janela, a vida de um trabalhador comum, as contradições que revestem todos os seres humanos. Nisso residem sua dicção, seu charme e sua novidade.
Por livre associação, lembro-me de Cine Paradiso, quando o diretor faz um filme incluindo todas as partes cortadas. E assim voltam os beijos, todos os beijos um dia censurados.
É a materialidade poética na construção das imagens, fazendo vir à tona o que sempre esteve ali, mas que precisava de um olhar que o revelasse, para que pudesse existir.
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